Declaração

O património como valor estratégico e oportunidade de Setúbal

O Património Cultural constitui-se como um dos activos mais preciosos de qualquer Concelho, em especial dos que possuem percursos históricos mais antigos e cujos recursos naturais foram parcialmente exauridos com o tempo e actividades humanas. Trata-se de um activo de que cada geração, presente e futura, se deve considerar como fiel depositária e cuja amplitude transcende a esfera estritamente local. Não podemos considerar-nos donos de tudo quanto nos foi colectivamente legado e que pertence em grande medida a quem nos antecedeu, cabendo-nos a nós apenas reparti-lo com os nossos contemporâneos e com quem nos há-de suceder. Cuidar e desenvolver o Património Cultural, muito mais do que uma decorrência da lei, nacional, europeia ou universal constitui, pois, um imperativo civilizacional e de cidadania.Em mais de trinta anos de vida democrática recente deram-se passos importantes para que o Património Cultural português começasse a adquirir na sociedade o lugar central, progressivo e moderno que lhe compete. Libertámo-nos de fantasmas; somos unânimes na consideração de que as políticas de Património Cultural constituem o desígnio central do Estado e das Autarquias na área da Cultura.

Em consequência organizaram-se departamentos específicos da Administração central e local, promoveram-se cursos para formar técnicos especializados, criaram-se

associações profissionais e cívicas… e no entanto o Património Cultural português continua em grande parte abandonado, em acelerada degradação, sem ter ocupado a centralidade que requer nas políticas do Estado e na sociedade em geral.

Mais recentemente, a perda de horizonte político estratégico e a desqualificação operacional e técnica dos serviços do Estado na área do património atingiu extremos inimagináveis. Corre-se o risco de regressão significativa e irremediável. Sucedem-se as denúncias de escândalos relacionados com a destruição de bens patrimoniais e a paralisia de serviços, pelo que cabe às autarquias um papel determinante na salvaguarda deste recurso.

Neste quadro político e social, os cidadãos subscritores da presente Declaração sentem que é chegada a hora de constituir uma plataforma no sentido de facilitar a análise conjunta de todas as problemáticas patrimoniais, que até aqui vinham estudando sectorialmente.

Partindo do diagnóstico e denúncia da situação actual, sempre que justificado, a plataforma ora criada visa sobretudo abrir a via de uma alternativa de esperança no futuro, constituindo-se desde já como um fórum de reflexão e de proposição de medidas, habilitando os restantes agentes sociais, nomeadamente os partidos e o Executivo local, a melhor exercerem as suas competências próprias e visando sobretudo, em última instância, a adopção da uma linha estratégica de desenvolvimento de Setúbal, tirando o devido partido do Património Cultural local.

Para alcançar os objectivos indicados a plataforma irá desenvolver um programa variado de iniciativas, que passam pela elaboração de estudos sectoriais de diagnóstico aprofundado da situação actual e pela organização de conferências e debates onde a ideia de força O Património como valor estratégico e oportunidade local, constituirá o mote federador.

Insistimos no nosso ponto de que o direito ao Património Cultural constitui não somente uma obrigação constitucional e legal, mas representa sobretudo um direito societário de novo tipo, tão importante como o do acesso à informação. Importa passar das palavras aos actos, dar conteúdo efectivo aos amplos consensos políticos existentes neste domínio e, de uma vez por todas, fazer do património um desígnio comum, assumido colectivamente pelo Estado e pelos cidadãos, individualmente considerados e também livremente organizados através de um movimento associativo forte e esclarecido, como é próprio de qualquer sociedade desenvolvida.

Para que o Património Cultural possa constituir a oportunidade de futuro, o desígnio local que reivindicamos, torna-se necessário prosseguir articuladamente as seguintes linhas estratégicas:

1. Promover o desenvolvimento de uma sociedade civil forte e esclarecida, verdadeiramente capaz de inspirar as políticas do Estado e dos agentes económicos e

sociais. Neste sentido é antes do mais desejável repensar e fortalecer as bases do contrato social estabelecido eleitoralmente, o que passa por quatro planos sucessivos de actuação:

a) A exigência que as propostas contidas em programas eleitorais contemplem medidas substantivas a tomar na área do Património Cultural;

b) A dotação do município com as capacidades técnicas e legais de efectiva fiscalização das acções neste sector;

c) Fazer com que se torne uma realidade a auscultação de todos os órgãos de consulta independentes e representativos, cuja existência, funcionamento regular e capacidade real de influência constitui uma das principais garantias do exercício da cidadania, especialmente em sociedades democráticas avançadas, como se pretende ser a nossa;

d) Promoção da competência técnica na autarquia nas áreas que tutelam o Património Cultural. O facto de se encarar a Cultura como um sector marginal e pouco preponderante na governação, tem tido consequências na capacidade de intervenção operacional. A Cultura, e o Património em especial, devem merecer por parte do Estado uma atenção mais cuidada e criteriosa, nomeadamente, na constituição das equipas responsáveis, pois destas depende em muito a definição e promoção das políticas públicas, nesta área tão sensível e especializada. Só apostando na excelência e catapultando a Cultura para a vanguarda das políticas locais, se poderão evitar erros que muitas vezes assumem um carácter irreversível;

2) Promover a qualificação profissional na execução das políticas patrimoniais, o que supõe designadamente:

a) O apoio aos curricula académicos e estágios práticos visando formação adequada ao exercício profissional das competências inerentes à execução das políticas patrimoniais existentes na região;

b) A substituição da lógica das empresas e mercantilização do Património Cultural, substituindo-a pelo apoio à criação e manutenção de ONG’s regionais com funções operativas;

c) A renovação dos quadros de pessoal da administração pública tanto técnicos como com funções de suporte (essenciais para um funcionamento eficaz dos organismos públicos), acorrendo ao perigo eminente de ruptura de serviços, que se vêm já hoje impossibilitados do exercício das funções de gestão e fiscalização que competem ao Estado e começam a colocar em risco a preservação efectiva dos bens patrimoniais sob sua gestão directa seja no sector dos museus, seja no sector do património arquitectónico e arqueológico;

3) Promover a transversalidade entre os vários sectores da autarquia, criando uma dinâmica que possa responder às actuais apetências de um público que, apesar de tudo, participa cada vez mais em determinadas manifestações de índole cultural. Refira-se, como exemplo o diálogo que poderá existir entre o património, museologia e criação contemporânea, tanto no domínio das artes plásticas como no das artes performativas;

4) Constituir os mecanismos que permitam o estabelecimento, com a adequada participação da sociedade civil, de uma efectiva política para o património cultural, dotada de suficientes meios financeiros, tendo especialmente em atenção os sectores da Cultura, da Educação, do Ambiente, do Urbanismo e do Ordenamento do Território e do Turismo;

5) É especialmente urgente proceder, no mais curto prazo, a uma reconfiguração do organigrama institucional municipal:

a) Definir um modelo coerente de gestão do Património Cultural local que possa garantir a sua efectiva salvaguarda, delimitando com rigor e bom senso as competências locais, tendo sempre presente a salvaguarda da capacidade interventiva, como garante último da perenidade de bens que, pela sua natureza, não constituem propriedade plena de nenhuma geração ou grupo particular;

b) Em concreto, reorganizar a orgânica a política na área do Património Cultural dotando-a de um esquema operacional agilizado e de circuitos de decisão claros, sem sobreposições de competências;

c) Assegurar o desenvolvimento de políticas de salvaguarda do Património Cultural integradas, incluindo os bens imóveis, móveis e imateriais;

d) Reforçar significativamente a dotação financeira no sector do Património Cultural;

e) Manter e reforçar as competências operacionais específicas desse sector, quer quanto a domínios técnicos de especialidade, quer quanto à actuação no território;

f) Zelar pela salvaguarda dos fundos documentais do organismo, como sejam os arquivos e bibliotecas de especialidade, garantindo a sua efectiva disponibilização pública;

g) Promover uma política inequívoca para o Inventário do Património Cultural de forma a garantir a continuidade e especificidade de sistemas e garantir simultaneamente uma eficaz e indispensável inter-operacionalidade entre os mesmos;

h) Incentivar a criação e integração em rede das bases de dados e sistemas de informação actualmente existentes, negociando protocolos que potenciem economias de escala no plano do recurso às infra-estruturas de telecomunicações;

i) Apoiar uma política de difusão cultural nomeadamente através da manutenção ou reformulação, mas nunca extinção, de publicações monográficas e periódicas, em certos casos já existentes;

6) Finalmente, é especialmente urgente proceder às reivindicações junto do Estado Central e outras instituições, responsabilizando-as pelos efeitos nocivos da sua acção junto do Património Cultural, no mais curto prazo, procurando que, através do diálogo se propiciem soluções para:

a) Propugnar pela musealização da feitoria fenícia de Abul, com acessos e sinalização clara;

b) Propugnar pela abertura ao público da cidade romana de Tróia, bem como pela construção do prometido museu monográfico de um dos mais importantes arqueosítios da Península Ibérica;

c) Exigir ao Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, a recuperação da villa romana da Comenda e da fortaleza de São Filipe, que se encontram em claro risco de derrocada, de acordo com a alínea i do artigo 2.º do POPNA (Resolução do Concelho de Ministros 141/2005, publicado no DR de 23 de Agosto);

d) Instar, junto da Reserva do Estuário do Sado, para a manutenção da abertura e usufruto público do Moinho de Maré da Mourisca;

e) Instar, junto do Ministério da Cultura, para a continuidade das obras na reabilitação do Convento de Jesus e reinstalação do Museu de Setúbal no mesmo;

f) Exigir à tutela a transferência de posse do Convento de S. Francisco para o município, de modo a aí serem instaladas valências culturais concretas, com índice de construção 0, para aí instalar o verdadeiro centro cultural há muito reivindicado para Setúbal;

g) Instar, junto da AMDS, pela reabilitação do Convento de S. Paulo e Santa Maria de Alferrara, de modo a albergarem funções de reconhecida utilidade pública, tais como ensino, culturais, patrimoniais e outras, a serem definidas em amplo debate público;

Ao apresentarmos publicamente a nossa iniciativa, pretendemos passar das palavras aos actos, tomando sobre nós uma parte da responsabilidade que reivindicamos para a sociedade civil em matéria da definição das políticas patrimoniais. Fazemo-lo numa óptica construtiva, de quem pretende constituir parte da solução. Neste sentido, o elenco de medidas acima indicadas representa apenas um primeiro contributo para o efeito desejado, devendo ser corrigido ou aprofundado em consequência da discussão ampla e pública que entendemos dever existir em domínio no qual todos nos sentimos colectivamente comprometidos.

Acima de tudo desejaríamos mobilizar todos, cidadãos e associações cívicas, especialistas e associações científicas ou profissionais, serviços públicos e empresas privadas, representantes eleitos pelo povo e políticos com funções governativas, para um amplo movimento de reflexão e debate que tenha por mote o princípio que nos anima: O património como valor estratégico e oportunidade de Setúbal.

Assinam,

Prima Folia – Cooperativa Cultural;

Associação dos Cidadãos pela Arrábida e Estuário do Sado (ACPAES);

Associação Cultural para o Estudo da Arquitectura, Urbanismo e Património Edificado (ACEAUP)

Associação Cívica Vidas Alternativas;

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